segunda-feira, 2 de abril de 2012

Contos para as crianças.




© APENA - APDD – Cofinanciado pelo POSI e pela Presidência do Conselho de Ministros
O RISCO DAS
MENTIRAS
António Torrado
escreveu e
Cristina Malaquias ilustrou
1 de Abril Dia das Mentiras


Um senhor disse:
– Macacos me mordam, se o que eu digo não se passou
assim mesmo...
Como não se tinha passado assim, nem tão-pouco mais
ou menos, veio um macaco e mordeu-o.
Um outro senhor disse:
– Raios me partam, se não é assim tal como eu conto...
Como não era assim tal como ele contava, nem sequer
parecido, veio um raio e partiu-o.
Um terceiro senhor disse:
– Ponho as mãos no fogo como falei toda a verdade...
Como não tinha falado toda a verdade, nem sequer um
bocadinho, veio o fogo e queimo-o.


O senhor mordido, o senhor partido e o senhor
queimado encontraram-se os três, no mesmo hospital. O
médico que os atendeu quis primeiro saber o que se tinha
passado. Os senhores contaram e, desta vez, sem tirar nem
pôr, contaram a verdade por inteiro.
Logo ali, o que tinha sido mordido sarou da mordidela,
o que se tinha partido voltou a ficar inteiro, o que se tinha
queimado curou-se da queimadura.
Saíram do hospital muito contentes e nunca mais
juraram falso.
Acreditam? Não acreditam?
Pois foi assim tal e qual como eu conto. Que me caia o
tecto em cima, se não é verdade!
Sobre a folha de papel da minha história, começa a cair
caliça... E cada vez em maior quantidade... Por que será?
FIM

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LIVRO FECHADO
António Torrado
escreveu e Cristina Malaquias ilustrou


2 de Abril --Dia Internacional do Livro Infantil


Era uma vez um livro. Um livro fechado. Tristemente
fechado. Irremediavelmente fechado.
Nunca ninguém o abrira, nem sequer para ler as
primeiras linhas da primeira página das muitas que o livro
tinha para oferecer.
Quem o comprara trouxera-o para casa e, provavelmente
insensível ao que o livro valia, ao que o livro continha,
enfiara-o numa prateleira, ao lado de muitos outros.
Ali estava. Ali ficou.
Um dia, mais não podendo, queixou-se:
– Ninguém me leu. Ninguém me liga.
Ao lado, um colega disse:
– Desconfio que, nesta estante, haverá muitos outros
como tu.

– É o teu caso? – perguntou, ansiosamente, o livro que
nunca tinha sido aberto.
– Por sinal, não – esclareceu o colega, um respeitável
calhamaço. – Estou todo sublinhado. Fui lido e relido. Sou
um livro de estudo.
– Quem me dera essa sorte – disse outro livro ao lado, a
entrar na conversa. – Por mim só me passaram os olhos,
página sim, página não... Mas, enfim, já prestei para
alguma coisa.
– Eu também – falou, perto deles, um livrinho estreito. –
Durante muito tempo, servi de calço a uma mesa que tinha
um pé mais curto.
– Isso não é trabalho para livro – estranhou o calhamaço.
– À falta de outro... – conformou-se o livro estreitinho.
Escutando os seus companheiros de estante, o livro que
nunca fora aberto sentiu uma secreta inveja. Ao menos,
tinham para contar, ao passo que ele... Suspirou.
Não chegou ao fim do suspiro, porque duas mãos o
foram buscar ao aperto da prateleira. As mãos pegaram
nele e poisaram-no sobre os joelhos.
– Tem bonecos esse livro? – perguntou a voz de uma
menina, debruçada sobre o livro, ainda por abrir.
– Se tem! Muitos bonecos, muitas histórias que eu vou
ler-te – disse uma voz mais grave, a quem pertenciam as
mãos que escolheram o livro da estante.
Começou a folheá-lo e, enquanto lhe alisava as primeiras
páginas, foi dizendo:
– Este livro tem uma história. Comprei-o no dia em que
tu nasceste.
Guardei-o para ti, até hoje. É um livro muito especial.
– Lê – exigiu a voz da menina.
____E o pai da menina leu. E o livro aberto deixou que o
lessem, de ponta a ponta.
Às vezes, vale a pena esperar.
FIM
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O LOBO E O MOCHO
António Torrado
escreveu e Cristina Malaquias ilustrou


Era uma vez um lobo que andava à caça. Ele andava,
andava, mas a caça, fosse coelho, javardo, texugo ou
perdiz, é que não andava por ali, à mão de ser caçada.
Já o lobo se impacientava, quando ouviu o piar de um
mocho. Estava no ninho, empoleirado num pinheiro novo.
O lobo pôs-se a sacudir, furiosamente, o tronco do
pinheirito, mas só lhe caíram duas pinhas na cabeça.
Lá do alto, o mocho gritou-lhe:
– Ó compadre, não abane tanto o pinheiro, senão os
meus filhos, que estão no ninho, acordam.
– Quero lá saber! – respondeu o lobo.
E continuou a sacudir o pinheiro.
Voltou o mocho:
– Ó compadre, por favor, vá abanar outro pinheiro e
deixe este em paz. É que os meus filhos, com tanto abanão,
ainda caem do ninho.

– Quero lá saber!
Por acaso até queria... Não queria ele outra coisa... E vá
de sacudir mais o tronco do pinheiro.
O mocho, de asas a tremer, repontou:
– Se o compadre continua a abanar o pinheiro, eu afino.
– Então afina – disse o lobo, a rir-se.
– E vou aí abaixo e dou-lhe uma desanda – ameaçou o
mocho, a ganhar coragem.
– Então vem, que eu também quero dizer-te umas coisas.
O mocho saltou para um ramo, ainda a alguma distância
do lobo.
– Chega-te mais perto, que o que eu tenho para dizer-te
os teus filhos não podem ouvir.
O mocho deu um saltinho para um ramo mais abaixo.
– Ainda mais perto – disse-lhe o lobo.
– Mais perto não, que os meus filhos podem acordar e,
não me vendo no ninho, assustam-se.
– Então volto a abanar o pinheiro.
– Isso é que não – e o mocho desceu mais.
Quando o lobo o viu perto, abocanhou-o logo.
– Ai compadre, que me magoa – queixou-se o mocho. –
Se vai comer-me, deixe-me, ao menos, despedir-me dos
meus filhos, que ficam sem ninguém que tome conta deles.
O lobo, com o mocho preso na dentuça, meneou a
cabeça, negativamente.
– Ao menos diga, para que eles oiçam: "mocho comi" –
pediu o mocho.
O lobo, para não abrir a boca, disse, muito baixinho:
– Mocho comi.
– Ó compadre, fale mais alto, senão eles, coitadinhos,
não ouvem.
– Mocho comi – disse o lobo, de dentes filados na presa.
– Nem se percebe – insistiu o mocho .– Fale mais alto.
O lobo desabotoou a boca, num grande berro:
– Mocho comi.
Liberto dos dentes, safou-se o mocho, a voar para o cimo
do pinheiro, enquanto dizia:
– Mocho comi? Outro que não a mim.
Pegou nos filhos um por um e foi pô-los a salvo, no alto
de um pinheiro de maior porte.
O lobo, de raiva, rilhou o tronco do pinheirinho e ficou
com a boca a saber a resina.
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CHORÃO E TREPADEIRA


Eram duas plantas muito diferentes. Uma, a trepadeira.
Outra, o chorão.
Chorão, neste caso, não é o que chora muito, mas uma
espécie de salgueiro, de ramos pendentes, com longos
cabelos penteados, a roçar a terra.
Em contrapartida, trepadeira é a que trepa muito, muros,
árvores, casas, vedações, o que calha.
– Tivesse eu a que me agarrar, que ia até ao céu – dizia
a trepadeira.
– Exageras – comentava o chorão. – A meio caminho
faltava-te o ar, tremiam-te as pernas e caías. Sei de um
feijoeiro com ambições, que também se perdeu pelo
caminho. Uma desgraça!
Esta conversa desesperava a trepadeira. E, num
rompante, exclamou:
– Pois vamos apostar que sou capaz.
Apostaram.
A trepadeira apoiou-se a uma parede, depois passou para
outra mais alta, subiu a um mastro, fincou-se a uma torre,
saltou para um arranha-céus e, subindo sempre, cheia de
genica, chegou onde nunca tinha chegado. Mas o céu
sempre longe.
Estava no terraço do edifício mais alto do mundo.
– Dê-me uma ajudinha – pediu ela a um avião que
passava, lá muito em cima.
Mas o avião não ligou e seguiu caminho.
– Leve-me consigo – pediu ela a um foguetão, que ia por
ali fora, como se levasse fogo no rabo. E levava...
Mas o foguetão também não ligou.
A trepadeira, então, desistiu. Os ramos começaram a
pender no sentido donde tinham vindo. Parecia – mal
acomparado! – parecia um chorão. E chorava e chorava
mesmo.
– Estiveste quase a conseguir – disse-lhe o chorão, que
não gostava de vê-la triste.
Mais consolada com estas palavras, a trepadeira
confidenciou:
– Quando estava lá em cima, tive uma tontura e...
saudades tuas.
Trepadeira e chorão entrelaçaram os ramos. Há plantas,
às vezes, que são como gente.
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© APENA - APDD – Cofinanciado pelo POSI e pela Presidência do Conselho de Ministros
A TINA AFLITA
António Torrado
escreveu e Cristina Malaquias ilustrou

A Tina não tem tino. Coisas que se dizem e se


espalham, sem quê nem porquê. Serão verdade? Serão
mentira? Eu cá não respondo.
Sucedeu, uma vez, que a Tina, acabada de chegar da
escola, ainda afogueada da corrida, recebeu da mãe esta
incumbência:
– Vai, se fazes favor, buscar a tua irmã a casa da avó.
– Levo o carrinho? – perguntou a Tina, que gostava de
guiar cadeirinhas de bebé.
A mãe disse que sim e a Tina desarvorou, empurrando o
carrinho, que ia leve, muito leve, como se imagina.
Não era grande a distância. A Tina pôs-se num instante
em casa da avó. Pegou na irmãzinha, que palrava e ria,
contente com a viagem que a esperava e voltou pelo
mesmo caminho.
Ao passar por um jardim, umas amigas da Tina
desafiaram-na para o jogo do apanha. Convite irresistível.
A Tina colocou a cadeirinha com a bebé à sombra de
uma grande piteira e foi brincar. Até que se fartou.
Suada e cansada, voltou ao sítio onde deixara a bebé.
Sentiu um baque no coração. A irmã? Onde estava a irmã?
Nem bebé nem cadeira de bebé. Muito aflita, pôs-se a
chamar:
– Filipa! Filipa! – como se a bebé soubesse responder-
-lhe.
Olhou em volta e viu, lá adiante, uma senhora apressada,
a empurrar uma cadeirinha. Levava-lhe a irmã, a grande
ladra. Patifa.
Correu, correu e quando chegou perto da senhora,
agarrou-lhe a aba do casaco e gritou:
– A minha irmã. Dê-me a minha irmã.
A senhora também gritou, a desembaraçar-se daquela
miúda desgrenhada, que não se despegava dela.
Na cadeira de bebé, um garotinho de olhos espantados a
tudo assistia. Quando percebeu o engano, a Tina fugiu, sem
saber como pedir desculpa.
Percorreu o jardim de ponta a ponta. Chorava. Por
situações destas ninguém queira passar.
Um guarda apercebeu-se do desespero da mocinha e
quis inteirar-se da causa.
– Roubaram-me a irmã – contou a Tina, desfeita em
lágrimas.
– Donde? – perguntou o guarda.
A Tina indicou. Voltaram para junto da piteira e,
efectivamente, do carrinho e da bebé nem rastos.
– Mas há outra piteira igual, mais adiante – apontou o
guarda.
Foram ver. Lá estava a Filipa, tranquilamente a dormir,
na cadeirinha. Afinal, a Tina tinha confundido as piteiras,
ambas grandes, ambas da mesma cor, ambas com asas de
dragão. A cadeirinha nunca tinha saído do mesmo sítio.
Ninguém raptara a bebé.
A Tina abraçou-se à irmã, a chorar. A bebé sentiu-se
apertada e também chorou. Até o senhor guarda se
comoveu.
Por mais anos que viva, por mais tino que ganhe, a Tina
nunca mais vai esquecer-se do que naquela tarde lhe
aconteceu.
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A COR DOS GATOS
António Torrado escreveu e Cristina Malaquias ilustrou


Fui há dias dar um passeio pelo campo e até me perdi.
Eu gosto muito de perder-me, principalmente porque sei
que, mais tarde os mais cedo, acabo sempre por
encontrar-me.
Quem se perde, sempre alcança. Ou não é assim o
provérbio? Quem se perde por gosto, não se cansa. Será
este? Também não me soa bem...
Mas já estou a desviar-me. Fui ao campo e, no meio do
mato, o que é que eu encontrei? Um gato, que rima com
mato. Um gato todo verde – verde-claro, verde-alface. Um
gatinho.
Não acreditam? A mim, a princípio, também me custou
a acreditar. Fui atrás dele e assim cheguei a uma clareira,
com uma espécie de casinha de bonecas no meio. À janela
estava uma velhota com um gato branco ao colo.

– Minha senhora, desculpe incomodá-la – disse eu –,
mas há pouco vi um gato verde, verde-clarinho... Será
possível?
– Pois claro que é – respondeu-me a velha ou, para
sermos mais delicados, respondeu-me a senhora de idade.
– A mãe é esta gata branca, que aqui vê ao meu colo.
– E o pai?
– O pai é um gato verde-escuro, que por aí anda. Está-se
mesmo a ver: branco com verde-escuro não pode ser
encarnado...
– Pois não – concordei eu. – Mas um gato verde-escuro
não lhe parece esquisito?
– O senhor deve ter a mania das complicações –
disse-me a velha, isto é, a senhora de idade, já um bocado
arreliada. – A cor dele é verde-escura, porque a mãe era
uma gata amarela e o pai um gato azul. Onde está a
admiração?
– A admiração?! Não sei onde está – balbuciei eu. –
Naturalmente também se perdeu.
Sem mais achar que dizer, despedi-me da senhora de
idade e, pé ante pé, virei as costas àquela casa no meio do
mato. Demorei que tempos até encontrar-me. Estava um
bocado azamboado. E ainda estou. Nota-se?
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NO TEMPO DOS MOSQUETEIROS
António Torrado escreveu e Cristina Malaquias ilustrou
7 de Abril - Dia Mundial da Saúde



Confidenciava o Joca ao avô:
– Gostava de ter vivido no tempo dos homens das
espadas...
Isto dito depois de ambos terem visto um filme daqueles
de espadachins de bigodes eriçados, capa ao vento e
chapéus emplumados. Fervia a espadeirada por pátios,
corredores, salões, escadarias de palácios intermináveis. A
meio dos duelos, gritavam: "À fé de quem sou que vos
hei-de trespassar, tratante!" E, enquanto não davam conta
dos vilões bandidos, os mosqueteiros decepavam velas,
fendiam cadeirões, estilhaçavam jarras, rasgavam
cortinados. O Joca saltava da cadeira, entusiasmado. Quem
lhe dera ser um deles!
Já o avô não partilhava da mesma opinião:
– Se vivesses nesse tempo, havia coisas com que não
podias contar. Olha, por exemplo, automóveis...
– Bá. Não me importava. Andava a cavalo.
– Pois. Talvez sim – reconheceu o avô. – Mas havia
outros inconvenientes...
– Quais?
O avô estendeu os dedos da mão esquerda e pôs-se a
enumerar:
– Naquele tempo, não havia playstations nem cinema
nem televisão nem telemóveis e, sobretudo, os cuidados de
saúde deixavam muito a desejar. Se alguém tinha febre,
recomendavam-lhe que se metesse dentro de uma tina de
água gelada, para fazer baixar a temperatura.
O Joca arrepiou-se.
– Por tudo e por nada, a ordem do médico era:
"Sangrem-no!"
O Joca ainda mais se arrepiou.
– É que tu tens de perceber que, naquela época, ainda
não tinham sido descobertos os remédios, hoje correntes.
– E já havia doenças? – perguntou o Joca.
O avô sorriu:
– As mesmas que há agora e mais ainda, mas estava-se,
completamente, às escuras sobre as causas que
provocavam essas doenças. Não havia antibióticos. Não
havia vacinas. A propósito: tu sabes quem foi Pasteur?
O Joca não sabia. Se vocês também não sabem, deixem-
-me que seja eu a fazer as vezes do avô do Joca. Ora tomem
atenção.
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Luís Pasteur foi um notável cientista francês, que
revolucionou a Medicina, a partir dos meados do século
dezanove, isto é, desde há cerca de cento e cinquenta anos.
Neste passo, o Joca terá dito:
– Já sei, avô. Foi ele que "inventou" os micróbios.
Talvez fosse melhor que o Joca tivesse ficado calado...
De facto, microrganismos invisíveis a olho nu sempre
existiram. O que o Pasteur provou foi que estes
minúsculos seres em suspensão no ar eram responsáveis
pelo aparecimento e transmissão das mais diversas
doenças.
Hoje, qualquer pessoa fala de micróbios, bacilos,
bactérias. Dantes, à falta de microscópios potentes que os
comprovassem, só deles se tinha conhecimento pelos seus
efeitos.
No Sul de França grassara uma doença que punha em
risco as culturas dos bichos-da-seda. Os fabricantes de seda
de Lyon punham as mãos à cabeça, já se vendo na ruína.
Chamado a investigar a causa, Pasteur isolou as bactérias
portadoras da enfermidade, impediu o contágio e salvou a
indústria.
Outras epidemias animais foram por ele estudadas e
combatidas, graças a um método experimental que
consistia em tornar inofensivo o bacilo que provocava a
doença. Era como se conseguisse, quimicamente, tirar-lhe
a violência e a perigosidade e torná-lo pacífico, a ponto de
combater e eliminar os bacilos violentos que atacavam o
organismo.
– O bandido tornava-se mosqueteiro do rei – comparava
o Joca, desta feita com muito acerto.
Uma vez, Pasteur foi chamado de urgência, em socorro
de uma criança que tinha sido mordida por um cão raivoso.
O seu destino seria uma morte atroz.
Pasteur nunca tinha experimentado a vacina contra a
raiva em seres humanos, mas não hesitou. E o menino
salvou-se.
Tempos perigosos esses...
– Afinal, já não queria viver no tempo dos mosqueteiros
– suspirou o Joca, depois de ouvir os esclarecimentos do
avô.
Não nos custa a ter a mesma opinião.
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SAPATOS DE PASSEIO
António Torrado escreveu e Cristina Malaquias ilustrou



Enquanto dormimos, os sapatos dão grandes passeios.
Sobretudo os de andar por casa – chinelos, pantufas,
sapatilhas e por aí fora.
Os sapatos dos velhinhos que, durante o dia, já só andam
a arrastar, mal apanham os donos a dormir, saltam,
dançam, saltaricam que é uma maravilha. Nem se acredita.
As botas dos que trabalham no campo escapam-se para
a cidade. Os sapatos dos citadinos vão dar uma
voltinha até ao campo mais próximo. E também há
sandálias que gostam de passear-se sozinhas à beira mar,
nas noites de Lua Cheia.
Mas isto está tudo muito bem combinado. Assim que
sentem que são horas de voltar, os sapatos, botas, botins,
botifarras, chinelos e sapatões correm para junto das camas
dos seus respectivos donos e aí ficam, muito quietinhos, à
espera de serem calçados.
Agora eu vou contar a história de uns sapatos que se
perderam. Eram uns sapatos de menino, ainda pouco
habituado a andar.
Estava o menino mergulhado em pleno sono, quando os
sapatos, pé ante pé, se decidiram a ir correr mundo. Para
eles o mundo seria tudo o que ultrapassasse a sua pouca
experiência de sapatos de quarto, de sala, de corredor e,
quando muito, de jardim.
Assim que se viram sozinhos na rua desataram a correr.
Com o que não contavam era com um cão vadio que, ao
vê-los tão soltos, tão ligeiros, abocanhou um deles e fugiu.
O outro correu atrás do bicho pulguento, a exigir o seu par.
O cão assustou-se e largou-o, sem se virar para trás.
Ficaram outra vez os dois sapatos lado a lado. Mas onde
é que estavam? Eles, que tinham pouca prática da vida,
desorientaram-se. Era a primeira vez que vinham à rua e
sentiram-se perdidos.
Andaram para um lado e para o outro, à procura da casa
com jardim. A zona da cidade, aonde tinham vindo parar,
só tinha prédios muito altos, com andares de escritórios.
Ora, como se sabe, nos escritórios, à noite, não dorme
ninguém. Pode dormitar, de dia, um ou outro empregado,
mas à secretária, sentado e calçado.
Os sapatinhos ainda pediram ajuda numa montra de
sapataria. Sem resultado. Eram sapatos novos, recem-
-saídos da caixa, e não conheciam aquelas paragens.
O par de sapatos do menino fartaram-se de andar, a noite
toda. Já começava a nascer o sol, quando uma senhora que
ia para o trabalho os viu. Pegou neles, mirou-os e remirou-
-os, apreciando a qualidade e pouco uso, e meteu-os no
saco.
A senhora era empregada da limpeza de uma casa com
jardim, logo por coincidência a casa onde morava o
menino, dono dos sapatos. Quando eles perceberam que
estavam em território conhecido, saíram, muito sorrateiros,
do saco da senhora mulher-a-dias e foram em bicos de pés
para o quarto do menino, ainda a dormir a bom dormir.
A senhor fez as suas limpezas, aprontou os pequenos-
-almoços e abalou para outra casa de família, onde também
trabalhava.
Quando, ao fim do dia, a senhora Deolinda regressou,
muito fatigada, à sua própria casa e procurou no saco os
sapatinhos que, de madrugada, tinha achado na rua, não os
encontrou.
– Esquisito! Era capaz de garantir que os tinha guardado
no saco. Ou terei sonhado?
Sonho da senhora Deolinda, sonho do menino, dono dos
sapatos, ou sonho dos sapatos do menino, tanto faz. O que
importa é que esta história acaba onde começou.
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O SALPICO
António Torrado escreveu e Cristina Malaquias ilustrou
Era uma vez um salpico. De tinta. Caíra por acaso num

nariz. O nariz estava, já se vê, numa cara. A cara pertencia,
como se imagina, a um corpo.
Nariz, cara, corpo, mais braços e pernas, tudo nos seus
respectivos lugares, compunham um boneco de pasta ou de
plástico, igual a dezenas de outros, numa oficina de
brinquedos.
Vestidos com o mesmo tecido barato, todos enfileirados
e prontos, os bonecos, aliás, as bonecas, estavam ali para o
que desse e viesse.
Arrecadadas umas tantas para dentro de uma caixa,
viajaram até uma feira. Dispostas lado a lado, no
escaparate do feirante, pareciam uma varanda de meninas
para casar.
Elas não diziam: "quem quer, quem quer casar com a
carochinha", mas era como se dissessem.

– Quanto custa esta boneca? – perguntava alguém.
– Tanto – dizia o vendedor.
Algumas iam à vida, embrulhadas em papel de cor.
Tinham o destino certo. Mas a maioria ficava.
– Ó mãe, olha ali aquelas bonecas. Compra-me uma... –
pediu uma garotinha de olhos tristes.
A mãe fez de conta que não ouvia. A miúda insistiu:
– Compra, mãe, compra.
E a mãe:
– Não pode ser, filha. Não temos dinheiro para luxos.
Era uma pobre de pedir. Mas talvez se tenha lembrado de
quando era menina, sem bonecas nem brinquedos, e
perguntou ao feirante o preço das monas. Recuou, quando
soube. A mão da filha muito apertada na sua... Foi então
que deu com a boneca salpicada.
– E esta, que tem defeito, por que preço a faz? –
perguntou.
O vendedor nem tinha reparado. Aborreceu-se com a
descoberta e para despachar a mercadoria disse:
– Tanto – ... muito menos que as outras.
A mulher contou as moedas e pagou. Aninhou-se a
boneca nos braços da miúda. Por causa de um salpico do
acaso, vejam só o que pode acontecer!
E não é que o salpico da boneca, ao colo da menina, se
desvaneceu, como por encanto?!
Há casos assim. Acontece, às vezes.
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O MAR E O CARACOL
António Torrado escreveu e Cristina Malaquias ilustrou
Era uma vez um caracol que, além da carapaça,
transportava com ele uma ambição, um sonho de caracol
novo: conhecer o mar. Para satisfazer o seu sonho sentia-se
capaz de tudo. Lentamente, pacientemente, percorria um
carreiro de que não sabia o fim. Andando sempre,
perguntava:
– Senhora Formiga, sabe dizer-me se vou no bom
caminho para chegar ao mar?
– Não sei, não sei do que fala. Eu só conheço o
formigueiro onde vivo e chega e chega para o trabalho que
me dá.
O caracol não quis reter por mais tempo a afadigada,
enfrenesiada formiga...
Mais lá para diante, encontrou o Lagarto. Fez-lhe a
mesma pergunta, a que o Lagarto, entre dois bocejos,
respondeu:
– Deixe-se de aventuras, caracol amigo. Sabe tão bem
gozar o calor do sol, enquanto se dorme uma boa sesta.
E, dizendo isto, adormeceu. O caracol, embaraçado, não
voltou a acordá-lo.
Seguiu em frente, sempre em frente. Deixava nas ervas
por onde passava um rasto luminoso, que retomaria,
quando tivesse de voltar para trás. "Estou no mar não tarda!
Estou no mar não tarda!", repetia ele, muito animado,
esfregando os pausinhos um no outro. Até que encontrou
um grilo.
– O mar é já ali adiante, não é, Doutor Grilo?
– O mar, o mar provavelmente fica ali, mas não quer
dizer que não fique noutro sítio... Quando eu digo ali,
também posso dizer acolá.
O caracol deixou o grilo a contas com os seus discursos
enfatuados e virou-lhe as costas, discretamente.
Andou, andou. Viu mais animais, todos virados para as
suas respectivas vidas e alheios ao mar. O caracol andou,
andou.
Devagarinho, porque só devagarinho sabia andar, o
caracol, que iniciara ainda muito novo a sua aventura, já se
sentia velho. Estava mesmo muito velho, mas não cansado.
Isso era impossível. Ao pé dum canavial, encarou com um
rã, bicho que nunca tinha visto até aí. Com muito bons
modos, fez-lhe a pergunta do costume.
A rã respondeu, num coaxar risonho:
– O mar, o mar é já ali. Põe-se lá em dois saltos.
Infelizmente, o caracol velhinho não saltava. Além
disso, a carapaça já lhe pesava muito. Por isso demorou
ainda mais um ano, dois meses e oito dias até chegar ao
lugar que a rã apontara. Mas, quando chegou, que
deslumbramento. Sempre era o mar, o seu querido mar que
tanto, tanto desejara conhecer.
Ali estava ele, amplo, espelhado, a perder de vista. Ao
longe via mais canaviais. "Outra terra, uma terra estranha,
para além do mar...", pensou.
O mar calmo reflectia nas águas os dois pausinhos do
velho caracol, debruçado na margem. Realizara finalmente
o sonho de toda a sua vida. Que bom!
Devagar, muito devagarinho, o caracol buscou o
caminho do regresso. Tinha muito que contar.
Coitado do caracol! Mal sabia ele que não chegara a
conhecer o mar, o mar verdadeiro, mas apenas um pequeno
lago de águas paradas, formado pelas chuvas, feio, sujo,
infestado de mosquitos, enfim, um charco entre caniços.
Isso que interessa? Se não era o mar, o mar de facto,
sempre era o mar do caracol aventureiro...
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